terça-feira, 9 de junho de 2009

Capítulo IX – Corra, fique


Érica que raramente sorria por sorrir mantinha os lábios em um eterno sorriso resplandecente como se também eternamente tivesse sido dela o vapor de ser aquilo que era e que,finalmente teria descoberto que sempre havia sido naquela manhã de luz única. Aquela luz que agora era vista em seus sorriso, em seus dentes cheios de uma vida que de parda tinha apenas sua pele, a mesma pele que o cobria e que seria então a única coisa que os separavam.


Mateus a observava como antes não conseguia, com um olhar distante o suficiente para vê-la de fato como aquela que sorria em si. Os olhos que via eram os dela, não mais buscando os dele e então não mais sendo dentro dos dele que também encharcados de qualquer coisa que cheirava a vida poderiam ser eles mesmos, desprovidos de um segundo par, de eternos irmãos. Eram o que eram e queriam que fosse assim.


Érica passava manteiga no pão enquanto lambia as pontas dos dedos com um prazer jamais visto diante do abismo que era seu desejo tão urgente e refletido em Mateus. Os olhos se cruzavam como cruzavam afiadas garras entre desesperadas provas de amor e aflição enquanto o sol começava a queimar redondamente alaranjado lá fora. Todo o ambiente se reafirmava em sua luminosidade que de breve não tinha muito. Toda a força de todos os lados se cruzando como garras, os olhares dançando envolta da mesa. Os dedos lambuzados de querer, a saliva que misturada com o pão resgatava qualquer coisa de um gosto primordial por aquilo que a fome traz, como se a fome – ela sim – pudesse ser maior do que os dois seriam se apenas fossem. Érica continuava em sua busca pelo gosto perfeito, tocando com a mesma vontade o interior da xícara cheia de café e leite, quentes mas não o suficientes para fazer com que ela recuasse. Sentia a textura do líquido – sim, ele teria uma textura especial para ela – e levaria os resíduos que com pouca força de vontade se mantinham reticentes envolta do indicador e dedo médio até os lábios, reforçava o movimento que faria para levar o gosto até a língua doce sem ter que se mover muito para isso, gostava das coisas sutis que como num passe de mágica eram de fato muito mais simples. Ela sorria enquanto sentia o mundo, nos dedos, na boca, na pele. Mateus recolhia as migalhas que caiam dos ombros da irmã. Contava cada segundo, cada momento de redenção e guardava – seria de fato boa lembrança para algum dia – e se permitia reavaliar um mundo de existência em um, permitia permear-se de si e de seus olhares além do lugar de escolha – e o fazia, calado e sincero. As horas passadas dentro daquele último café da manhã entre quatro mãos, quatro mãos tão parecidas seria o último de muitas formas.


O último em que garras tão afiadas descansavam juntas antes de se prepararem para autônomas caças, buscas inteiras por aquilo que era único e não mais por aquilo que era comum – mesmo que o comum fosse comum a dois ainda era comum.


Enquanto as torradas eram devoradas, os ovos esfriavam no canto dos pratos, “I can't quit you baby” tocava desesperadamente no som estritamente imparcial de Mateus, a voz nervosa de Robert Plant deixava o calor espantado daquele ar que era apenas ali respirado por aqueles dois revirado, as últimas forças eram afinal reguladas pela quantidade de movimentos contra a guitarra, o peso dos braços de Mateus pesavam ainda com mais uma atitude revoltada do que antes já que sim, o calor que não era algo natural daquele lugar reverenciava a todos com seu grande poder de manter olhares e sirenes a postos, desejos e verdadeiras vontades intermináveis a prova. E era isso que acontecia, Érica respirava dentro do seu tempo enquanto percebia que o peso também reafirmava seu poder sobre ela. O suor era inevitável. O que restava era aqueles que haviam feito um pacto silencioso, um pacto que renunciava, esperando talvez por uma reforma em suas formas de ver o outro, mas nunca que algum pedido assim tão vão e tão marcado por revolta seria atendido – era fato. Mateus aceitava, mas não seria assim tão fácil admitir.


Os tremendos toques eram sempre acompanhados de faíscas das mais coloridas. Era verão. Que aquilo significasse qualquer coisa que fosse, não faria diferença, Érica que repentinamente se largava na cadeira que talvez estivesse ali há muito mais tempo do que ela tinha de vida, se deixava desatenta a sua própria postura, a vontade era de se expandir desastrosamente ao cabo do seu instinto mas não esperava o mesmo de Mateus que, sem falar muito – como havia de ser – refletia sem entoar palavras quaisquer, sentimentos indefinidos por sua canalização já automática, aprendera desde sempre a não dar nomes ao que sentia, e era assim que fazia.


O dia corria como quem corre do tempo.




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