terça-feira, 9 de junho de 2009

Capítulo XIII – Janelas, Reflexos


Marianne carregava qualquer coisa envolta do pescoço que não parecia ser um simples enfeite. Nada nela parecia simplesmente posto ali, seria tudo parte de uma razão de ser que talvez por ser em Marianne fosse mais do que em todas as outras colegas de Mateus? Talvez. Alguma idéia ainda mais intrínseca à malha de sentimentos incoerentes de Mateus e que sem a frieza irregular e quase amorosa de uma presença que esperaria por ele até nos dias de maior inebriação, uma ponte se tornaria nada além de um espaço na terra ainda não atravessado e que hoje finalmente o seria.


Mateus ainda hipnotizado pelo pequeno penduricalho preso ao pescoço de Marianne que sem mais refletia qualquer feixe de luz, ou qualquer cor viva que se apresentava no caminho desapercebida do encanto que causava enquanto reverberado envolta do pescoço de Marianne.


Bom, você quer mesmo que eu o leve pra casa?”


A pergunta que, sem o menor esforço veio à tona resistiu dentro de Mateus o quanto pode. Ele tentava não olhar diretamente para ela, enquanto o carro que agora rosnava contra um infinito de silêncio exterior se movia dentro de um mundo que mal cabia dentro do seu olhar particular. O eco não existia. A pergunta morrera assim que assimilada pelo ouvido um tanto resistente de Mateus.


Não.”


Por longos segundos Marianne que sorria confiante de que essa seria a resposta, permanecia calada e certa de que já saberia para onde estava indo.


Vou para onde você me quiser levar.”


Ah. O bem que faz não se saber de mais nada além do seu próprio nome, e mesmo sabendo as letras que unidas formam o som pelo qual te chamam num dia de fúria ou numa noite de terror, tudo mais se desfaz em falta de tom por pleno medo. Medo de não viver o suficiente pois a limitação veio em forma de sons, calçados convenientes em um mundo de números ambulantes e pedintes.


Mateus esquecera da forma que seu nome possuía e sem mais nem menos resolveu... tentar.



***


Marianne morava em apartamento simples mas em um ponto da cidade completamente oposto ao que ele morava. O lugar parecia, assim logo de cara luxuoso. Janelas que eram na verdade as próprias paredes da sala de estar, poucos móveis – o suficiente para uma pessoa só – e poucas cores intensas. Tudo era preto no branco, branco perdido no preto. Mateus tinha pressa, quase que por acidente sentia o sangue lhe queimar por inteiro e a cor da mobília pouco o interessava. Marianne pediu que se acalmasse, que precisava lavar as mãos primeiro, que se fizesse confortável logo ali e que já voltaria. A porta do banheiro ficou semi-aberta, Mateus que mal conseguia se sentar respirava fundo. Involuntariamente a imagem de Érica parecia voltar a sua memória a cada segundo e algo não se encaixava inteiramente bem, tudo o que era para ser feito teria de ser feito ali, naquele instante.


A torneira anunciava algum movimento, a porta que rangeu de leve anunciou a entrada e entre um movimento irregular e um olhar de apetite irregular, Mateus lançou suas mãos pesadas sobre a cintura de Marianne que por sua vez se inclinou para receber a boca de Mateus sobre a sua. O gosto parecia ser recebido inteiro.


Pensei mesmo que você não se aguentaria...”


A saliva de um se misturava com o prazer do outro. Ele se colocava sobre ela que pesava contra a fria porcelana que continha a pia, os detalhes tão únicos que faziam de toda mulher uma mulher dela mesma. Finalmente Mateus sem nenhum sinal de paciência arrebentava com as mãos imparciais o sutiã preto que caía junto daquela que o vestia com o peso de Mateus a pressionando como jamais ela havia sentido.


O terror, o olhar reprovador de Marianne contrariando o dele no reflexo do espelho.


Mateus tentava não notar enquanto com pressa procurava roubar tudo o que poderia daquela que pouco se parecia com Érica.


O calor era intensamente reformulado pelo tamanho frio que Marianne sentia.

As grossas lágrimas que caíam repercutiam no ouvido quase humano de Mateus até que suas mãos, que antes prendiam Marianne contra sua vontade, voltavam ao seu rosto avermelhado e quente, o terror.


O terror que sentia.


(O reflexo do pingente que descansava sobre a porcelana fria.)


Marianne se levantava aos poucos, perdida no desgosto que observava desalinhar-se diante de si.


O reflexo de seu cabelo encaracolado que por momentos eram lisos e eram de Érica.


O pavor.


Mateus finalmente caminhavapara longe batendo a porta ao sair. Pela imensa janela da sala o sol começava a se apresentar novo e fresco enquanto o corpo cansado e perplexo de Marianne se lançava ao chão frio de um banheiro vazio.





Capítulo XII – Anúncio, Queda



Ela gostava de gastar com bobagens, seria esse o principio: bobagens. Uma correntinha qualquer com algum penduricalho qualquer que algum dia servira de significativo presente de alguém para ela, mas que agora já não lhe servia nem de bagagem de memória. Tinha muitas dessas pequenas amostras de afetos diversos, todos dispensáveis por tanto tempo, tantos que pareciam ser apenas o que foram: o início de uma vida plena de sensações que nunca ousou viver.


Sentada de frente para a janela de moldura trabalhada, cores desbotadas e de uma cortina tão fina que chegava a ser uma piada pensar que aquilo esconderia qualquer coisa, Érica prestava atenção apenas à atenção que consagrava à lenta queda do sol por detrás dos antigos prédios daquela região quase folclórica, as cores enfim se fundiam numa, da maneira que gostava de ver, dão valor excessivo ao colorido – ela pensava – quando o desafio maior é descobrir a intensa beleza no humor monocromático. Como gostava dessa palavra. Monocromático. Repetia delicadamente e deixava o som rolar entre seus lábios de gosto intenso.

Teodoro se mexia na cama, percebia Érica brincando com a corrente em volta do seu pescoço e com o olhar voltado para o tempo lá fora. Pensava que deveria fazer o máximo para não fazer muito barulho, esses momentos eram mais do que mágica, eram de fato o encontro daquilo que seria o nosso âmago, o nosso verdadeiro estado de ser com a dolorosa verdade que nada mais era do que o Fim. O fim que respira e murmura palavras em nossos ouvidos durante toda a nossa vida e em troca nos pede apenas uma coisa: nosso eterno medo. Érica enfrentava ali o Fim que não pedia licença para tomar aquilo que era intrinsecamente seu, Teodoro observava salientando em sua cabeça apenas do fato do Fim ser a eterna beleza do que se vive, agora e agora e agora.


O momento era engolido, sim, claro. Mas não digerido e por isso seu gosto permanecia como algo eterno – o grande paradoxo do Fim! - sendo remoído ferozmente pelas bocas que daquele Fim se asseguravam.


Gosta do que vê?”


Érica sorria sem tirar os olhos do que se passava lá fora.


Gosto-muito.”


Engraçado...”


Do que ri?”


Acabou de dizer 'gosto muito' como se parecesse ser apenas uma palavra.”


Érica gostava da pertinente observação daquele que a observava de longe e com tal certeza de si que sua presença brilhava pelas paredes daquele quarto que por pouco não eram uma extensão daquela mesma cor que resplandecia lá fora.


Gostaria de jantar comigo? Em algum lugar que nunca tenha ido?”


Claro.”


O convite era enfim bem empregado já que desde o dia anterior quando os dois se enfiaram naquele quarto, não haviam levado comida alguma para dentro, sinal de que tudo o que parecia irregular e novo era também real.


Érica passava as pontas dos dedos sempre prontos envolta dos olhos que por alguma razão pareciam inchados, o Fim ao certo sabia exatamente como encher de lágrimas olhos virgens.


***


Teodoro segurava as pontas do fino tecido que em forma de laço dava ao desenho da silhueta de Érica um ar todo feminino por estar bem acima da sua cintura. Sem perceber qualquer coisa, Érica apenas observava as pessoas comendo e conversando calmamente no pátio daquele restaurante que seria ainda mais perfeito se tocasse música ao vivo. Gostava das coisas feitas ao dente.


Se tentar se mexer eu desarrumo todo o seu vestido.”


Com esse alerta Érica respirou fundo e se imobilizou enquanto propositalmente Teodoro inclinava seu tronco e levava seus lábios contra a nuca daquela mulher que nunca havia sido beijada daquela maneira antes, o sorriso quase infantil de Érica entregava seu segredo: nunca havia sido amada como uma mulher deseja ser – e isso não pode ser mal interpretado, por isso vou esmiuçar bem o que acabei de redigir.


A mulher, em seu conteúdo mutável, em seu sentido desfrutável sempre arde por aquilo que é algo além e esse além vai sempre estar logo ali, logo adiante, logo ao alcance dela – o problema maior é reconhecer o que se está diante de si quando nem o si está certo de que existe da forma que existe, sim é tudo bem confuso. Érica nunca havia sido amada dessa forma, da forma que faz com que toda mulher olhe ali, adiante e por alguma brincadeira ardilosa do destino ela havia encontrado onde menos esperava – numa rua movimentada em horário nada nobre quando todos estão a ver as horas passar – aquele que a faria querer ver além, aquele que despertaria sua benevolente vontade de ser... mulher.


Até então, Érica era alguém que muito se parecia com um ser a procura de uma forma, talvez algum tom de luminosidade que desesperadamente procurava uma brecha para iluminar qualquer vão escuro que fosse e, talvez Teodoro acabaria por ser essa tal fenda – Érica se agarrava a sua descrença afinal nunca tinha vivido aquilo que vivia e talvez por ler muito, pressentia ser aquela personagem ambígua que mora entre o sentir e o ressentir, sem saber bem se havia um meio termo para isso.


Teodoro dava as instruções para o garçom, falava em sua língua nativa dentro de sua terra nativa e com gentes de descendência parecida com a sua, Érica sentia algum tipo de dor por não se sentir nativa de lugar algum, próxima de gente alguma. Ele continuava a explicar de que maneira, de que peso e que medida se eram feitas as vivências em determinadas áreas do globo, porque as pessoas se perdiam e porque eram delas o por do sol final - “pena que não notam a tempo” - enquanto a comida vinha, enquanto a bebida os enfraquecia, enquanto as garfadas e os desejos eram consumidos Teodoro denunciava a vida como ela é grossa, moída da forma que Érica jamais havia ouvido – e ela concordava de prontidão com muito do que ouvia mas negava com a mesma paixão aquilo que não engolia, que não se encaixava em suas mãos sempre prontas. Respondia a altura mas só que não com palavras e sim com a entrega de um olhar tão confiado – porque acreditava nele – que o momento dispensava palavras. Aliás, que momento que precisa engolir palavras como se o ato de reverenciar imprudências fosse o único que restasse a qualquer ser da classe humana e não, Érica parecia não concordar com formulas concebidas de inúmeros séculos de depravação humana, nem mesmo com a idéia de que existir faria parte de qualquer coisa maior, maior do que a vida por si só – Érica sempre viu ela mesma e todos aqueles que andam por aí e que falam línguas como fantasmas da arrogância, cheios de uma estupidez adorada e regojizada como única forma de se conviver num mundo que de fato não é de ninguém. Teodoro parecia que sentia tudo isso transpirando e sendo misturado com o ar envolta de Érica, percebia sua intensidade e sua profundidade como ninguém jamais poderia por em palavras e dentro de seus ouvidos depositava todo um jorro de nítidas impressões que serviriam de ferramenta dilatadora ao peito profundo de Érica, coisa que poderia resultar em um penoso fim a qualquer coisa que começava já com ares de perfeição razoável (dentro de parâmetros daqueles que não vivem sob parâmetro nenhum).


Érica tomava algum ar logo depois da refeição que parecia a mante-la aquecida mesmo com o vento frio que começava a soprar na sacada do restaurante. O cigarro era consumido apressadamente como se dele dependesse a sua vida.


Teodoro caminhava lentamente na direção de Érica que ao sentir a presença do mais novo amigo escalava a algum local mentalmente onde pudesse respirar. A presença, sentia em suas mãos, é demais para ser assimilada tão rapidamente. A presença deve ser degustada como se fazem os amantes do bom vinho, da boa comida, da vida refletida, e ela sabia bem disso mesmo que silenciosamente.


Ao sentir que ela ali, quieta observava as ondas de um mar pouco compreensivo indo e vindo, Teodoro lançou seguramente sua mão direita sobre seu ombro esquerdo que friamente permaneceu imóvel.


Teodoro não entendeu prontamente.


Não sei como te dizer o que sinto.”


As palavras atiradas contra o vento úmido que consumia tudo o que estava envolta não fazia a compreensão das palavras jogo fácil, Teodoro mantinha um certo pudor em querer entender de qualquer maneira o que Érica estaria dizendo de qualquer maneira.


Não sei como... explicar que não quero, e é isso que quero dizer, que não quero alguém que divida qualquer coisa comigo. Não agora.”


Teodoro realmente não conseguia ver além daquilo que ali se apresentava como uma verdadeira revolta inflamada contra o mundo e em sua compreensão quase infalível demais respeitara todas e quaisquer palavras que Érica largava contra a corrente.


Ele que, de uma forma fria e crua se mostrou inteiro o homem que era a Érica, também demonstrara santidade intacta ao partir, colocando o chapéu de volta sem uma única palavra que contestasse aquilo que Érica pedira.


Ela preferia não olhar para trás enquanto Teodoro pagava a conta e partia calmamente com algum rumo certo – ou pelo menos era o que gostava de demonstrar.



Capítulo XI – Mar, e Anne



Marianne andava com o passo corrido, corrido disse eu? Talvez fosse mais fácil me lembrar da história assim, corrida já que sem o tempo que corre nada seria de fato vivenciado como a vida desses dois costumava passar mesmo nos momentos em que o tempo mais parecia se arrastar. Enfim, Marianne corria apressadamente como de costume e Mateus sabia que já já chegaria. Os dois trabalhavam juntos na mesma agência, quase fazendo a mesma coisa mas se esqueciam disso pois pouco se falavam. Ela estava sempre atrasada, Mateus adiantado. Gostava de se sentar diante do computador por pelo menos uns bons trinta minutos navegando por qualquer coisa que o estimulasse durante aquele dia. A palavra que era a obsessão de Érica não era a de Mateus, mas sim o seu som. O som que atravessava obstáculos incalculáveis mas que não, não poderia nunca ser insuperável e que sim, seria eterno enquanto existisse qualquer condutor que o leve a quem – ou o que – pudesse apreciar tamanho esforço – que muitas vezes é pouco sendo comparado, e é por isso que Mateus nunca comparava, nada. Talvez seja por essa razão também que nunca saberia não deixar qualquer sensação envolve-lo como um abraço irresistível, como um sono que não pede licença e nem pergunta a data, que não revê relatório e não precisa de açúcar em seu café. Marianne. O nome era pouco musical, seria mais se fosse Mariana, mas Mateus não gostava de pensar no “e se”. Marianne aparecia abrindo a porta de vidro, ninguém mais a esperava, todos já sabiam de suas demoradas entradas – e sempre, sempre dramáticas. Mateus daquela vez esperava pacientemente pela porta se abrir, antes mesmo de ligar o seu computador em um ato que até então seria tido como certo e presente desde o primeiro instante.


Ela estava vestida como quem pede para ser notada, “como se ninguém percebesse como é linda” pensava Mateus quase em voz alta – que por instante pensou que havia dito o que disse em voz alta, olhando para os lados tentando perceber se havia sido notado. Alguém trazia qualquer coisa a sua mesa e o desejava bom dia, confuso com o olhar distante do receptor que continuava ali em hiato dentro de um pensamento qualquer que sem ressentimento ecoava como uma assombrosa influência, todos percebiam Mateus, mesmo sem ele mesmo perceber tamanha preocupação na atmosfera que o circundava.


Marianne derrubava a bolsa antes mesmo de chegar à mesa, fato bem percebido por Mateus que a princípio não havia ligado a ação a alguma reação da parte dele, mas já que o mesmo deveria acontecer para que finalmente os dois tivessem uma palavra um com o outro, ele aceitava essa como única ferramenta presenteada pelo destino para que sim aquele momento acontecesse, então Mateus estendeu a mão, se ajoelhando de frente de Marianne que com um grande susto enquanto levava a mão ao peito, retomava o fôlego e finalmente agradecia.


Era dado início.


A que?


Qualquer coisa que eles precisassem esperar para ver acontecer.


***


Naquele dia por conta da delicadeza mostrada por Mateus, Marianne lançava olhares diversos como também eram diversas as tonalidades de intenções por trás dos mesmos. Olhos que, por pouco não mencionavam exatamente aquilo que diriam se tivessem o dom da fala – coisa rara naqueles dias de plena e tão livre solidão, já que Érica tinha partido sozinha para uma viagem pouco usual para seus gostos até então tidos como regra geral para que os dois pudessem fazer qualquer coisa acontecer. Érica tinha pavor de avião, mas havia tomado um dessa vez (e sozinha!), para a surpresa do irmão. Mateus não reformulava questões nem respondia às anteriores. Nada seria mais do que inútil do que isso, portanto resistia a tudo, menos ao que ali parecia que o restava. Muitas vezes pensava que deveras era o único homem do mundo com esse peso a carregar e a bem da verdade era que de fato é o que ocorria, ninguém mais no mundo inteiro tinha aquela abordagem à vida – seria real? Talvez fosse apenas um fator genético – mas não, Érica de fato não faria o mesmo portanto genético é que nada deveria ser.


Enquanto seus olhos dançavam pela tela iluminada do computador, o tempo passava como um rojão pela praça revogando a atenção de todos menos a dele. Ainda pensavam os colegar que Mateus deveria ser simplesmente “mais um louco”. Sis... Relembrava do som pouco musical que de alguma forma o tomava precipitadamente.


Mateus?”


A voz não era de Érica.


Seu olhar sucumbia à direção de onde o som havia vindo.


Mateus? Já estão fechando a agência, quer uma carona?”


A realização de qualquer realidade retornava a lhe incomodar, como incomoda uma coceira qualquer na planta do pé enquanto ainda se está calçado e não se pode alcançar o ponto certo a tempo, Mateus sorria aborrecido e fazia que sim com a cabeça, logo estaria andando pelo corredor tão extenso quanto acanhado até que a porta batesse sozinha contra o vazio daquele andar deixado às moscas.





Capítulo X – Teu, Douro


Érica que agora pincelava e escolhia cores de camisas diferentes e penas e plumas que combinassem com seus chapéus mais diversos, gostava de sentir o calor novo de um sol diferente, um sol mais redondo, menos amarelo sobre a pele quase fria. Digo pincelava poque Érica gostava muito dessa palavra. Era adepta daqueles momentos intrinsecamente íntimos em que repetia alguma palavra qualquer pelo tempo que fosse até aquele conjunto de sons – fossem eles qualquer conjunto – perder qualquer nitidez de significado, deixando assim o peso de uma história e talvez um povo inteiro para trás, como se essa fosse sua grande vingança contra um humanidade que simplesmente a mostrava o que deveria sentir e como. Enquanto passeava o dedos quase não longos o suficiente pelas araras e texturas a sua frente, repetia calmamente e suavemente a palavra “pincelar”. Pincelar. Pin. Ce. Lar. Lar. Repetia como se degustasse cada letra, cada sílaba,cada momento que perdido se rendia ao seus lábios quase fartos. Não gostava de admitir, mas sabia que de uma forma ou de outra, tudo o que faria de agora em diante era para esquecer que não mais poderia usar o dorso de sua mão quase não feminina para amparar o rosto do seu, porém não pensava sobre isso com palavras. Muito pelo contrário. Pensava com o teor daquilo que lhe era novo. Como se o novo fizesse qualquer comparação insensata – pelo menos por agora. Agora. Essa era outra palava que dançava pelos seus lábios quentes, que quentes estavam por estarem atentos.


Do outro lado da movimentada rua, um homem com as feições quase masculinas demais observava Érica em sua viagem esplêndida e solitária. Se rendia aos leves movimentos assumidos por ela como uma simples forma de mostrar respeito ao dono do estabelecimento e sua mercadoria. Gostava de mostrar algum respeito, ao menos era o que achava que aquilo que carregava ardosamente no peito se chamava. Mas como de costume não tinha muita fé nas palavras, nem das inteiras e muito menos das meias e com isso continuava a observar qualquer coisa que se passava pela sua frente – ou que simplesmente estava. O homem continuava interessado e de nada se parecia com o interesse que Mateus carregava em seu olhar eternamente frio e distante, e tanto era distante que muitas vezes Érica mesma não sentia sua presença, mesmo já o conhecendo tão bem que saberia dizer com precisão o que sairia de sua boca em momentos diversos.


O interesse do homem masculino demais reafirmava-se com o calor alaranjado daquele sol diferente enquanto ela finalmente descobria que havia mais do que ver ali, bem ali adiante. Entre todos aqueles que passavam absortos do mundo um a chamou a atenção por justamente estar a observando de longe sem nenhum pudor ou receio por estar em público. O seu olhar era de alguma forma desafiador, obreiro. Como se estivesse calculando o trabalho que daria para botar as mãos nos ombros daquela mulher com a pele tão pálida como sua alma quase fraca. “Fraca”, pensava o homem do outro lado da rua: “uma ala pálida e fraca esconde as desordens do mundo, e são nelas que vou me encontrar.” Ele prendia entre os dedos grossos, nozados e tortos um isqueiro antigo e que parecia a primeira vista, pesado. O reflexo que fazia enquanto o usava para acender a um cigarro casual prendia ainda mais o olhar de Érica. Suas mãos de dedos cheios finalmente se cansavam de regular paisagens pelas suas pontas decidiu transferir o trabalho para s pés, aqueles que ali reagiam positivamente e sem demais indagações. Seu corpo inteiro reagiria da forma que conhecia: indo direto na fonte.


Seu movimento quase brusco foi aceito pelo homem ali do outro lado da rua com naturalidade bastante compreensível já que para um homem com um queixo delineado como aquele e de olhar reto como reto é o olhar de um homem de verdade, nada no fim é tido como surpresa, mesmo que a surpresa em si seja sim, única e inédita. Não admitiria jamais, mas nunca tinha visto uma mulher responder tão prontamente a um chamado ainda mais uma mulher... estrangeira.


Ao chegar mais próxima com seu passos comedidos porém fortes, Érica tomou o cigarro que já estava preso entre os lábios daquele homem que de perto ainda parecia mais lascivo do que antes e com nenhuma hesitação resplandecida recitou em voz de quem não reage, apenas atua:


Esse seu gesto de não oferecer um cigarro a uma mulher frágil e desamparada como eu mostra que não devo confiar em você.”


Sem algum tempo para tomar fôlego o homem responde cruelmente:


E quem disse que um homem como eu deveria confiar em uma mulher de alma fraca como a sua?”


Uma mulher de alma fraca nunca se engana.”


Então eu sou um cafajeste.”


Não.”


Não?”


Isso.”


O movimento dos lábios de Érica puxando para si cada trago daquele cigarro forte e quase mascado do homem frio a sua frente o prendia sem deixar com que suas intenções fossem mais do que realmente eram:


Então eu sou aquele que você escolheu.”


Sim, agora você acertou.”


E qual é o nome dado a quem me escolhe?”


O nome não é importante.”

Você nunca me enganou...Érica. Aposto que seu nome é Érica.”


Ah é? E porque aposta isso?”


Porque você é.”


Os olhos que o engoliam com o prazer daquele ato de saborear o cigarro cru em sua boca agora se apertavam quase com o mesmo calor que seu corpo sentia logo ali, onde o estômago teima em queimar.


Aposto que seu nome também não importa e que nos próximos instantes eu serei tua. Mas só nos próximos instantes pois nem uma mulher de alma fraca como a minha é propriedade de um homem forte por toda a vida.”


Os dois se olhavam como se rasgavam por dentro: sem piedade. Pela primeira vez ao olhar dentro dos olhos de algum homem, Érica não via Mateus e sem esperar por mais nada aquele homem que ali estava carregava sua mão junto da dele, com a mesma frieza e calculado propósito para longe. Érica não sabia bem o que pensar e era por isso que calmamente pronunciava como quem apenas respira um mesmo nome: Teodoro. Teo. Do. Ro.




Capítulo IX – Corra, fique


Érica que raramente sorria por sorrir mantinha os lábios em um eterno sorriso resplandecente como se também eternamente tivesse sido dela o vapor de ser aquilo que era e que,finalmente teria descoberto que sempre havia sido naquela manhã de luz única. Aquela luz que agora era vista em seus sorriso, em seus dentes cheios de uma vida que de parda tinha apenas sua pele, a mesma pele que o cobria e que seria então a única coisa que os separavam.


Mateus a observava como antes não conseguia, com um olhar distante o suficiente para vê-la de fato como aquela que sorria em si. Os olhos que via eram os dela, não mais buscando os dele e então não mais sendo dentro dos dele que também encharcados de qualquer coisa que cheirava a vida poderiam ser eles mesmos, desprovidos de um segundo par, de eternos irmãos. Eram o que eram e queriam que fosse assim.


Érica passava manteiga no pão enquanto lambia as pontas dos dedos com um prazer jamais visto diante do abismo que era seu desejo tão urgente e refletido em Mateus. Os olhos se cruzavam como cruzavam afiadas garras entre desesperadas provas de amor e aflição enquanto o sol começava a queimar redondamente alaranjado lá fora. Todo o ambiente se reafirmava em sua luminosidade que de breve não tinha muito. Toda a força de todos os lados se cruzando como garras, os olhares dançando envolta da mesa. Os dedos lambuzados de querer, a saliva que misturada com o pão resgatava qualquer coisa de um gosto primordial por aquilo que a fome traz, como se a fome – ela sim – pudesse ser maior do que os dois seriam se apenas fossem. Érica continuava em sua busca pelo gosto perfeito, tocando com a mesma vontade o interior da xícara cheia de café e leite, quentes mas não o suficientes para fazer com que ela recuasse. Sentia a textura do líquido – sim, ele teria uma textura especial para ela – e levaria os resíduos que com pouca força de vontade se mantinham reticentes envolta do indicador e dedo médio até os lábios, reforçava o movimento que faria para levar o gosto até a língua doce sem ter que se mover muito para isso, gostava das coisas sutis que como num passe de mágica eram de fato muito mais simples. Ela sorria enquanto sentia o mundo, nos dedos, na boca, na pele. Mateus recolhia as migalhas que caiam dos ombros da irmã. Contava cada segundo, cada momento de redenção e guardava – seria de fato boa lembrança para algum dia – e se permitia reavaliar um mundo de existência em um, permitia permear-se de si e de seus olhares além do lugar de escolha – e o fazia, calado e sincero. As horas passadas dentro daquele último café da manhã entre quatro mãos, quatro mãos tão parecidas seria o último de muitas formas.


O último em que garras tão afiadas descansavam juntas antes de se prepararem para autônomas caças, buscas inteiras por aquilo que era único e não mais por aquilo que era comum – mesmo que o comum fosse comum a dois ainda era comum.


Enquanto as torradas eram devoradas, os ovos esfriavam no canto dos pratos, “I can't quit you baby” tocava desesperadamente no som estritamente imparcial de Mateus, a voz nervosa de Robert Plant deixava o calor espantado daquele ar que era apenas ali respirado por aqueles dois revirado, as últimas forças eram afinal reguladas pela quantidade de movimentos contra a guitarra, o peso dos braços de Mateus pesavam ainda com mais uma atitude revoltada do que antes já que sim, o calor que não era algo natural daquele lugar reverenciava a todos com seu grande poder de manter olhares e sirenes a postos, desejos e verdadeiras vontades intermináveis a prova. E era isso que acontecia, Érica respirava dentro do seu tempo enquanto percebia que o peso também reafirmava seu poder sobre ela. O suor era inevitável. O que restava era aqueles que haviam feito um pacto silencioso, um pacto que renunciava, esperando talvez por uma reforma em suas formas de ver o outro, mas nunca que algum pedido assim tão vão e tão marcado por revolta seria atendido – era fato. Mateus aceitava, mas não seria assim tão fácil admitir.


Os tremendos toques eram sempre acompanhados de faíscas das mais coloridas. Era verão. Que aquilo significasse qualquer coisa que fosse, não faria diferença, Érica que repentinamente se largava na cadeira que talvez estivesse ali há muito mais tempo do que ela tinha de vida, se deixava desatenta a sua própria postura, a vontade era de se expandir desastrosamente ao cabo do seu instinto mas não esperava o mesmo de Mateus que, sem falar muito – como havia de ser – refletia sem entoar palavras quaisquer, sentimentos indefinidos por sua canalização já automática, aprendera desde sempre a não dar nomes ao que sentia, e era assim que fazia.


O dia corria como quem corre do tempo.