terça-feira, 9 de junho de 2009

Capítulo X – Teu, Douro


Érica que agora pincelava e escolhia cores de camisas diferentes e penas e plumas que combinassem com seus chapéus mais diversos, gostava de sentir o calor novo de um sol diferente, um sol mais redondo, menos amarelo sobre a pele quase fria. Digo pincelava poque Érica gostava muito dessa palavra. Era adepta daqueles momentos intrinsecamente íntimos em que repetia alguma palavra qualquer pelo tempo que fosse até aquele conjunto de sons – fossem eles qualquer conjunto – perder qualquer nitidez de significado, deixando assim o peso de uma história e talvez um povo inteiro para trás, como se essa fosse sua grande vingança contra um humanidade que simplesmente a mostrava o que deveria sentir e como. Enquanto passeava o dedos quase não longos o suficiente pelas araras e texturas a sua frente, repetia calmamente e suavemente a palavra “pincelar”. Pincelar. Pin. Ce. Lar. Lar. Repetia como se degustasse cada letra, cada sílaba,cada momento que perdido se rendia ao seus lábios quase fartos. Não gostava de admitir, mas sabia que de uma forma ou de outra, tudo o que faria de agora em diante era para esquecer que não mais poderia usar o dorso de sua mão quase não feminina para amparar o rosto do seu, porém não pensava sobre isso com palavras. Muito pelo contrário. Pensava com o teor daquilo que lhe era novo. Como se o novo fizesse qualquer comparação insensata – pelo menos por agora. Agora. Essa era outra palava que dançava pelos seus lábios quentes, que quentes estavam por estarem atentos.


Do outro lado da movimentada rua, um homem com as feições quase masculinas demais observava Érica em sua viagem esplêndida e solitária. Se rendia aos leves movimentos assumidos por ela como uma simples forma de mostrar respeito ao dono do estabelecimento e sua mercadoria. Gostava de mostrar algum respeito, ao menos era o que achava que aquilo que carregava ardosamente no peito se chamava. Mas como de costume não tinha muita fé nas palavras, nem das inteiras e muito menos das meias e com isso continuava a observar qualquer coisa que se passava pela sua frente – ou que simplesmente estava. O homem continuava interessado e de nada se parecia com o interesse que Mateus carregava em seu olhar eternamente frio e distante, e tanto era distante que muitas vezes Érica mesma não sentia sua presença, mesmo já o conhecendo tão bem que saberia dizer com precisão o que sairia de sua boca em momentos diversos.


O interesse do homem masculino demais reafirmava-se com o calor alaranjado daquele sol diferente enquanto ela finalmente descobria que havia mais do que ver ali, bem ali adiante. Entre todos aqueles que passavam absortos do mundo um a chamou a atenção por justamente estar a observando de longe sem nenhum pudor ou receio por estar em público. O seu olhar era de alguma forma desafiador, obreiro. Como se estivesse calculando o trabalho que daria para botar as mãos nos ombros daquela mulher com a pele tão pálida como sua alma quase fraca. “Fraca”, pensava o homem do outro lado da rua: “uma ala pálida e fraca esconde as desordens do mundo, e são nelas que vou me encontrar.” Ele prendia entre os dedos grossos, nozados e tortos um isqueiro antigo e que parecia a primeira vista, pesado. O reflexo que fazia enquanto o usava para acender a um cigarro casual prendia ainda mais o olhar de Érica. Suas mãos de dedos cheios finalmente se cansavam de regular paisagens pelas suas pontas decidiu transferir o trabalho para s pés, aqueles que ali reagiam positivamente e sem demais indagações. Seu corpo inteiro reagiria da forma que conhecia: indo direto na fonte.


Seu movimento quase brusco foi aceito pelo homem ali do outro lado da rua com naturalidade bastante compreensível já que para um homem com um queixo delineado como aquele e de olhar reto como reto é o olhar de um homem de verdade, nada no fim é tido como surpresa, mesmo que a surpresa em si seja sim, única e inédita. Não admitiria jamais, mas nunca tinha visto uma mulher responder tão prontamente a um chamado ainda mais uma mulher... estrangeira.


Ao chegar mais próxima com seu passos comedidos porém fortes, Érica tomou o cigarro que já estava preso entre os lábios daquele homem que de perto ainda parecia mais lascivo do que antes e com nenhuma hesitação resplandecida recitou em voz de quem não reage, apenas atua:


Esse seu gesto de não oferecer um cigarro a uma mulher frágil e desamparada como eu mostra que não devo confiar em você.”


Sem algum tempo para tomar fôlego o homem responde cruelmente:


E quem disse que um homem como eu deveria confiar em uma mulher de alma fraca como a sua?”


Uma mulher de alma fraca nunca se engana.”


Então eu sou um cafajeste.”


Não.”


Não?”


Isso.”


O movimento dos lábios de Érica puxando para si cada trago daquele cigarro forte e quase mascado do homem frio a sua frente o prendia sem deixar com que suas intenções fossem mais do que realmente eram:


Então eu sou aquele que você escolheu.”


Sim, agora você acertou.”


E qual é o nome dado a quem me escolhe?”


O nome não é importante.”

Você nunca me enganou...Érica. Aposto que seu nome é Érica.”


Ah é? E porque aposta isso?”


Porque você é.”


Os olhos que o engoliam com o prazer daquele ato de saborear o cigarro cru em sua boca agora se apertavam quase com o mesmo calor que seu corpo sentia logo ali, onde o estômago teima em queimar.


Aposto que seu nome também não importa e que nos próximos instantes eu serei tua. Mas só nos próximos instantes pois nem uma mulher de alma fraca como a minha é propriedade de um homem forte por toda a vida.”


Os dois se olhavam como se rasgavam por dentro: sem piedade. Pela primeira vez ao olhar dentro dos olhos de algum homem, Érica não via Mateus e sem esperar por mais nada aquele homem que ali estava carregava sua mão junto da dele, com a mesma frieza e calculado propósito para longe. Érica não sabia bem o que pensar e era por isso que calmamente pronunciava como quem apenas respira um mesmo nome: Teodoro. Teo. Do. Ro.




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