sexta-feira, 24 de abril de 2009

Capitulo VIII



Capitulo VIII- O Mar


Mateus inclinava seu tronco sobre o parapeito enquanto Érica ainda observava o mundo - agora - bem acordado lá fora. Ele tentava fazer com que ela olhasse de volta para ele mesmo percebendo que a irmã não faria isso, não naquele momento. O céu – como ela havia observado – estava realmente deslumbrante e Mateus notara logo o que chamava a tenção de Érica: a cor roxeada que quase como mágica de algum artista habilidoso se entrelaçava com os fiapos de nuvem que ainda se mantinham de alguma forma presos ao grande teto azul da terra. Ela estava inquieta, como de costume é de se supor, mas seus olhos brilhavam mais do que num dia qualquer, poderia se dizer que seus olhos refletiam um desejo maior do que ela e que por alguma razão nunca foram notados por Mateus. Os dois permaneceram ali por muito tempo, quase que em algum êxtase, ela por observar tudo como uma imensa esponja aberta e ele por ser tomado pela intensa grandeza dos sentimentos da irmã. Irmã... Ele repetia a palavra calmamente e deixava o ar ser exalado tranquilamente por entre os lábios entreabertos. Gostava de sentir a leveza do ar e como o mesmo com tanta sutileza e vontade moldava a musculatura tão bem treinada da região da mandíbula e bochechas enquanto os olhos apenas observavam.


+/+


Para a surpresa maior e quase íntima de Mateus, Érica sorria. Seus cabelos eram levados de um lado para o outro pela brisa suave que tocava com alguma delicadeza presunçosa sua fina linha do pescoço, a curva delicada dos maxilares e o delgado traço que separava a cor vermelha intensa dos lábios do branco translúcido e desatento de sua pele tão parecida com a que também o envolvia. A diferença morava nos traços. Riscas essas que pareciam aparecer mais para ele do que para ela que sim, sobrevivia para suas experiências internas e pessoais enquanto ele respirava por aquilo que sabia que vivia ali em algum lugar que não sabia onde mas que entendia que estava além dele próprio.


Érica finalmente exalava algo que dava mostras de alguma vontade real e absoluta de se comunicar, Mateus só não entendia bem com quem.


...A cada nova peça que cai, mais um amor que morre...”


Do que você está falando?”


...Falando? Não sei... achei que estivesse falando só para mim.”


Sua risada tímida trouxe um imenso véu de confiança sobre Mateus que agora sabia que poderia olhar bem nos olhos dela e ver o que antes não enxergava através dos sorrisos frágeis que por algum tempo mantinha sua fisionomia entretida.


O que você tem feito aqui fora?”


Tenho sentido o mundo.”


Ele tem sido generoso com você?”


Generoso?”


Seus olhos trocavam de cor como quem troca de chapéu em busca de um que combine melhor com a estampa da camiseta.


Generoso...sim, generoso como eu sou de volta.”


Generoso como você é para mim?”


O sorriso inocente se transformava em olhar cúmplice, em sabotagem conjunta.


Sim...”


Mateus agora mais próximo da irmã tocava com o dorso da mão contra a face de Érica que por sua vez não tentava mais se esconder, aceitara que não poderia ir para lugar algum, ali era seu lar, ele era sua moradia.



Érica havia finalmente se jogado contra si mesma, e por enquanto brincava com a consciência que havia adquirido entre os dedos, essa que era tão recém nascida que ainda tinha os olhos pregados e as mãos falhas. Jogando-a de um lado para o outro, repetindo movimentos e intenções, ela ali saciava sua vontade primal de qualquer coisa que se alinhasse repentinamente ao que alguém chamaria de si mesma, de self, ou simplesmente de É. Nunca havia experimentado a si mesma daquela forma e gostava do sabor. Mateus que a observava atento sentia algum alívio por perceber na irmã uma leveza não tão própria dela, atípica. Gostava do que via e sentia prazer em poder se sentir mais desligado dela, porque sim, esse brilho que se via sobre seus cabelos longos, olhos atentos e corpo agora firme e bem moldado estava finalmente desligado do dele, em pleno dia, e quem poderia ter adivinhado: em uma manhã de sol.


Érica agora se colocava totalmente de pé, de frente para o mundo vasto e reluzente e se punha a espreguiçar e estirar todo o seu ser, ele a observava admirado, como alguém se espreguiça com tamanho desejo de transgredir seus próprios limites físicos? A intenção era essa mas ela não tinha nome e nem consciência para aquilo, não sabia o que fazia e se o fazia era somente por instinto, ou mais por desejo de estar ali e de estar mais ainda ali do que jamais esteve. Assim que largou o corpo junto do suspiro intenso que seguiu a tensão de toda a musculatura e logo em seguida seu relaxamento, se virou de frente para o irmão e sorriu enquanto trazia os lábios até sua testa, o contato de lábios e pele, as mãos que até agora só brincavam com a consciência delas mesmas se embrenhavam nos cabelos arredios de Mateus. As pontas dos dedos e a pele que se mantinha tão distante do mundo por debaixo dos fios grossos marcavam a manhã com uma eletricidade fulminante, uma descarga daquelas que de tão intensas não conseguem mais do que manter todos aqueles sob seu poder com a sensação de pura retribuição. Era isso, o sentimento de gratidão revirava os estômagos de ambos e reformulava o ph do sangue que corria por suas veias. Reafirmava qualquer química que ainda rolava devagar entre peles e transpunha o sentimento que existia naturalmente entre os dois e entre o mundo que eles haviam criado.


Érica agora se concentrava em não se concentrar e caminhava de volta para dentro.


Mateus ainda permaneceu ali por alguns instantes que pareciam mais como eternidades encapsuladas em seus sonhos... num suspiro de desabafo carregado de dor e alegria, relatou a todos aqueles que não o ouviam em tom de certeza absoluta – como se qualquer coisa que fosse poderia ser absoluta.


É um mar, eletricidade em forma daquilo que foi gerado do pó... está bem, deixo.”


De dentro do pequeno apartamento o movimento daquilo que era o vulto de Érica fazia seu olhar se voltar para aquilo que ficou para trás das grandes portas de correr. Sua irmã estaria agora preparando o café da manhã, pensava.


Sem protestar nem mesmo esperar ser chamado, hoje ele faria diferente: estaria à mesa antes mesmo dela, pronto para a servir como fazem os homens que amam.




Capítulo VII


Capitulo VII- Dois, Outros



Mateus e Érica passariam aquela noite quietos, um olhando para o outro entrelaçados diante da TV não porque a mesma estivesse ligada, mas porque por alguma razão menor o sofá era o melhor canto de toda a casa. Enquanto o sono de fato não vinha ele sussurraria pela enésima vez a mesma história de como João e Maria tomariam o mundo se não fosse pelo mundo em si. Suas histórias a enchiam de qualquer segurança estranha que mantinha tudo centrado, tudo preso a algum fio imaginário que fazia parte desse vácuo que os dois chamavam de vínculo. O tempo la fora continuava a correr como um constante choro, uma lástima vivida apenas por privilegiados que sem muita graça partiriam do princípio básico de que uma casa é uma extensão do ser, estar dentro é o mesmo que travar um ato de proximidade com aquilo que é inconstantemente mais do que se poderia ser fora – e eles sabiam disso, de uma forma de outra consciente ou inconscientemente.


Mateus a deixava quieitinha onde adormeceu e a passos de quem toma mais cuidado do que deve, se guiou até o quarto onde seus instrumentos e computador estariam todos coligados a espera do toque único, responsável e inteiro dele, que sabia bem como se deixar ser usado por todos aqueles instrumentos revelados a ele de tal forma que nem mesmo estar nu representaria estar mais íntimo de si mesmo do que aqueles instrumentos estariam dele. Tudo era um grande mistério até aquela porta se fechar e os dedos longos com um formato todo peculiar de quem é mais um filósofo em repouso do que um trabalhador ávido tocarem os lugares certos, naquela hora que era de fato a certa. Mateus se dissipava em um tom todo dele que sem meias palavras rejeitava qualquer vontade alheia. Num quarto fechado onde até a janela parece ser parede espessa e sombria, o mundo não importava para ele como todo bom clichê que vivia e respirava naquela cidade cinzenta e dolorida como outras em todo o planeta. Ele não pensava. Não precisaria disso agora nem mesmo até a manhã banhar aquele canto da terra com algum sopro de qualquer coisa que pareceria a olhos ignóbeis algo como esperança. Ele já havia perdido essa coisa distante que chamava de fé e em nome do bom gosto que o servia de guia, recusava qualquer vontade maior do que aquela mesma que ali vivia: estar a sós com a música que dia após dia mais fazia parte de suas veias e ventrículos, deixando o corpo todo um ato de amor com aquilo que faria alguém sentir... o que? Qualquer coisa.


Enquanto tocava botões, cordas e pedais os fones de ouvido o mantinham ainda mais como um recluso amarrado a si mesmo. Os nós que atava eram degraus, os olhares que deixava de consumir eram alimento não presente, objetivo. O quarto rodava em si como o som que atiçava cada célula de seu corpo que desesperadamente procuram por algum lugar para se esconderem, nada era páreo para o que estava prestes a sentir e ele sabia disso. Sabia tão conscientemente que seria impossível explicar em palavras, era muito maior o conceito de si dentro do que estava para viver do que qualquer explicação. Ele também sabia disso. A manhã começava a despontar lá fora e inexplicavelmente o tempo não fazia sentido mais.



*/*


Ainda com os olhos fechados, Érica percebia a luz quente e alaranjada tomando suas pálpebras. Um sorriso tonto parecia tomar seus lábios, sentia algum prazer afinal com aquele espetáculo singular que era a manhã. Devagar seu corpo se espreguiçava como uma estrela a pedir por espaço, os olhos começavam a se abrir. A espessa camada do tecido que cobria o sofá parecia logo a incomodar e prontamente seu corpo inteiro urgia de necessidade de sair dali.


Ela se levantava como quem não tem a mínima vontade de esperar pelas coisas acontecerem, coisa que não condizia com a lente que realmente usava para ver o mundo. Caminhava decidia até a grande porta de correr de vidro da sala, a tal janela que não parecia ser mais do que apenas uma janela e no segundo que colocou algum esforço para fazer correr o único obstáculo que a mantinha distante do mundo alaranjado que alargara sua visão, uma leve brisa repercutia entre os quatro cantos da sala, procurando qualquer coisa que fosse para que o silêncio fosse tomado de ar, oxigênio para que os pensamentos feitos de nada fossem agora cheios de tudo. No corredor um Mateus sedento caminhava vestindo apenas calças e com os pés desprovidos de qualquer proteção. Sua visita até a cozinha foi curta, percebera Érica lá fora observando tudo do pequeno terraço e logo partiu ao seu encontro. Ela ali estava quieta, serena como a manhã e logo ali, nas ruas que mais pareciam labirintos repletos de uma intensidade que não era deles e não os pertencia, a vida brotava estéril – tudo o que eles não queriam ter de presenciar e que faziam de tudo para negar.


Mateus sorriu para a irmã que sorriu de volta como quem quer chorar de felicidade.


O céu, Matty...”


Eu sei...”






Capítulo VI

Capitulo VI- Celebrar, Celebrar


Se fazia claro o tempo úmido que lá fora se aprontava para despontar. As largas gotas já se lançavam contra os vidros grossos da janela que dava à sala alguma intimidade com o mundo de fora, os sons eram os mesmos de sempre: alguma música ao fundo no quarto enquanto o café era preparado na cozinha, a cozinha aquela que naquele instante parecia infinitamente distante, como se para se chegar lá seria necessário um verdadeiro esforço super humano. Érica de fato precisava de algum esforço sobrehumano para sair do estado que contemplava: o ser. Gostava de ser, tinha um verdadeiro prazer nisso. Observava contente os primeiros sinais de chuva e enquanto resguardava para si o sabor de cereja que aquele prazer fazia transbordar dentro de sua boca ávida por um tudo incapaz de ser suficiente para ela, percebia a si mesmo como poucas pessoas jamais perceberiam a si próprias. Por manter-se quieta e por se observar com tanta compreensão percebia mais do que o perceber conteria. Em seus olhos moravam um mundo de cores caóticas mas juntas criavam Érica. Ela era esse conjunto intrigante de abalos sísmicos, ela era – pelo menos agora – um ato de amor.


O bule no fogo apitava, era sinal que alguém precisava se locomover até o fim do mundo.


A passos de quem ainda aprende a andar, Érica se prendeu a necessidade de ir até a cozinha. Era daquele tempo que gostava, friozinho leve, uma chuva presa na garganta do céu e o café a ferver o olhar. Ela esperava calmamente o líquido escuro e fresco respingar do coador que quase cansado continuava a trabalhar. Seus olhos registravam cada nuance daquela escura massa que ficava dentro do filtro, o contraste do negrume antigo dentro do claro branco novo fazia Érica sorrir. O vapor que rondava o café era de se hipnotizar até Mateus que encostado ao batente da porta observava Érica em seu ato de comer com os olhos aquele fluido. Érica não o percebia, era. Érica é. Enquanto Mateus entende. Seus olhos procuravam os dela que desde aquela última noite de algo que parecia ter sido um desencontro, já não queriam trocar olhares com os dele. Era tarde para ela, mas ainda cedo dentro do dia que acabara de despontar triste. Mateus não pensava em estragar qualquer momento que ela estivesse vivendo ali diante da sua presença incalculada, e muito menos desejava que qualquer coisa que havia sido quebrada na outra noite voltasse a vida em cacos recolados e tortos como um quebra-cabeça de mau gosto. Precisava que isso que morria fosse posto de lado finalmente por ambos pois era aquilo que o mantinha com o olhar cinza, mesmo sabendo que seus olhos castanhos cheios de alguma vida que ainda não conhecia moravam em algum lugar daquele semblante ainda penoso.


Érica também o permitia ser e como uma sábia anciã repetia para si mesma o pensamento máximo que alcançara até então: morrer para viver. Morrer para viver.


De repente a chuva lá fora começava a atingir com violência as janelas frágeis da cozinha. Antes de se desesperar, Mateus caminhou até as mesmas para cerrá-las esbarrando de leve o cotovelo contra as costas cálidas de Érica que desnorteada, ficava a esperar pelo movimento se tornar no que eles tinham combinado há tanto tempo atrás, sem muito ligar para o caos externo. Mateus não se lembrou do combinado prontamente e Érica antes mesmo de Mateus ter tempo de se virar completamente de frente para ela, tinha os olhos cheios de lágrimas deixando tudo turvo, inclusive o que não queria ver. O café estava pronto como ele agora estaria para a ter de volta em seus braços. Ele a segurou firmemente de uma maneira que fazia tempo que não segurava e pedia perdão baixinho por não ter cumprido a promessa. O soluço que junto das lágrimas mantinham o seu peito quente começavam a desesperar os dois que sem mais tempo para alcançarem alguma forma de acento, se ajoelharam ali mesmo diante da dor crescente que os tomava. Um nos braços do outro, retumbantes e eternamente presos a uma dor revoltosa que não os largaria assim tão facilmente... Alguém havia colado as peças de volta, precipitadamente.




Capítulo V


Capitulo V - "the man with the broom"


Mateus caminhava apressadamente como se logo ali no fim da estreita rua apagada estivesse alguém que impacientemente esperava por ele. Érica tentava o acompanhar como a lua acompanhava seus passos mais lentos. Ele certamente tinha algo que precisava falar, alguma sensação que precisava externar para que assim pudesse voltar ao ritmo natural que possuía ao lado da irmã de cabelos tão grossos quanto os seus. Os sons dos passos perturbando as poças irritava Érica.


Matt, pare por favor!”


Mateus não a ouvia. Algo como um fogo intenso rabiscava o ar, a força de seu pesado irmão em contato com a atmosfera não traria bons frutos àquele momento. Érica parava claramente ferida como claramente estava – era próprio dela essa repetição de evidências, como se ao trazer o som de volta ao sem tom natural mais de uma vez as coisas fossem mais claras aos seus ouvidos. Ela teimava em manter-se quieta e parada, ele havia de ouvir. Alguns segundos se passavam e os passos iam ficando mais distantes como remota era a imagem dele.


Mateus!”


Em um último e desesperado grito, Érica conseguiu chamar a atenção dele que por sua vez parava pela força que era maior do que ele e que sussurrava aos seus ouvidos como se fosse uma grande teia que os mantinha presos, juntos. Mateus já tinha ouvido o chamado anterior e sabia que estava indo muito mais rápido do que Érica mas algo o mantinha em movimento constante. Alguma vontade talvez escusa para si mesmo o mantinha pronto para que seu desejo de escapar continuasse vivo. Ele não compreendia a si mesmo e isso nunca foi novidade para nenhum dos dois porém aquela noite algo assustara Érica.


Me perdoe, Érica.”


Mostrando ainda uma leve atribulação em sua voz miúda, Érica se dirigiu tranquilamente até Mateus que se mantinha quieto e focado em qualquer coisa além, onde não tivesse que olhar para trás. Enquanto observava qualquer coisa mais adiante esperava. Nada poderia ser mais do que se é – pensaria Mateus. Os pequenos passos companhavam agora passos menos pesados e os dois se dirigiam calmamente para casa, pelo menos era o que aparentavam.




Capitulo IV

Capitulo IV - Desvendar,Redobrar




O que seria importante para Mateus na sua vida? Perguntava-se constantemente como se disso dependesse sua familiaridade consigo mesmo. Respondia sempre afobado e abafado como que com medo da resposta ser mais alta do que a sua vontade de não saber. Érica observava de longe, olhos firmados numa eternidade que sabia bem Mateus não poderia ser infinita. Resta-nos uma saída, era o que repetia em voz alta. Uma saída que é aquela que temia mais entre todas: amar.


Érica se preparava para pegar mais uma bebida no balcão do bar com Rosa, bartender “senior” dentro daquele clube. Mateus a repercutir de longe, olhos inconstantes que dançavam entre pickup, irmã e corpos em movimentos quase intensos demais para serem realizáveis. Horas corriam como se correm desesperados participantes de maratonas que Érica nunca compreendia e um ritmo irregular como irregular eram os desejos daquele que ela chamava de amor sem saber muito bem o que aquilo poderia vir a querer dizer.


Como explicar para ela? Era a dúvida que então trazia consigo naquela noite. Como explorar o amor que não seja o nosso e respingar sobre suas mãos e ombros a certeza de que isso não significaria nos separarmos por nada? Ela aparecia, copo na mão, sorriso torto, dentes quase a mostra.


Aqui, Matty.”


Obrigado, Sis...”


Érica mantinha uma aura de quem está perdida em algum vão, mas Mateus sabia que não era bem assim, enquanto aquela que tinha os mesmos olhos, os mesmos fios grossos e pretos presos ao seu couro cabeludo patinava, ele a mantinha sob seu olhar quase paterno a espiar, espiando espiando atentamente... Ele a conhecia como conhecia seus pudores e desejos, como conhecia seus lugares mais escuros, seus pedidos mais desumanos enquanto Érica pairava santa, resguardada. Ela no fundo queria tê-lo não como aquele que dividiria sua vida desde o momento único que foram concebidos até o fim, mas sim como alguém que se é encontrado na rua, no cinema, no palco de um teatro abandonado no centro da cidade... Ela queria encontra-lo e assim te-lo, mas a sorte escreve histórias incabíveis. Os dois nasceram para serem unidos, sim, mas não como queriam.


Sis...”


Sim, Mat?”

Alcance aquele megafone para mim por favor...”


Em pouco menos de dois segundos o instrumento estava em suas mãos.


Em alguns minutos a noite acabaria pra quem dançava e começaria de fato para Mateus e Érica.





Capitulo III



Capitulo III- Pingado,Em



O caminho para o local favorito dos dois era longo. Entre poças e bolhas, buracos e cães perdidos ainda haviam outros mundos que sobreviviam ao sub-mundo em que habitavam. Ela e ele eram outro desses sub-mundos sempre forçados a cair na mesma música. A música. Se tocassem qualquer coisa que Mateus não gostasse era hora de pedir ajuda ao dono da casa, aquele que em seu minúsculo cubículo respirava o ar pesado da própria fumaça. Entre algumas pessoas que se seguravam contra outras tão perdidas quanto as primeiras, Mateus e Érica triunfantemente mas não por isso com certa dificuldade atravessavam toda a extensão escorregadia da pista que com o suor reunido das últimas horas parecia viver e respirar por si só, era um verdadeiro espetáculo que provava sem nenhum teor científico – Mateus teria odiado ouvir isso – que um grande grupo de humanos é de fato um grande bicho que respira.

Dentro do pequeno cubículo, Érica é deixada na porta e Mateus entra com uma autoridade ferina.


Lancaster! Onde anda seu bom senso, meu senhor?”


Ah Matty, vem aqui pegar no meu bom senso...”


Posso entrar?”


Achei que vocês não chegariam nunca...”


Trânsito!”


Claro, claro, conheço a cara do teu trânsito...”


Posso então?”


Entra. E fala praquele mané na estação que eu cansei dele nessa cidade... Ele não é mais bem vindo.”


Mateus diz que sim com a cabeça, Érica o observa. Lancaster chama o seu nome antes da porta ser fechada.


Matty!”


...Fala.”


Diga pra bela ao teu lado que eu ainda a amo...”


Pois que continue assim: platônico, bonitão!”


Enquanto rolavam por outros ainda no mesmo transe que estavam quando ali chegaram, Mateus se despede de Érica que fica pelo bar e responde suas próprias perguntas. Ali ela poderia logo deixar de ser ele e ela e logo seria ela, claro, ao som dele.


Mateus se preparava. Tirava os discos do seu gabinete pessoal, onde ficara durante horas alguns dias de sua vida simplesmente enchendo de tudo que poderia fazer alguma noite dessas uma faísca causar algum incêndio. A noite não seria um clichê como era pra todos os demais ali presentes. A noite seria uma senhora daquelas que observam e não sabem bem a hora certa de se retirar...




Capítulo II


Capítulo II – Passos,Dados




Os passos apressados enchiam os as paredes altas e antigas daquele prédio. Pés que, quase juntos desciam a escada, sempre juntos estariam – outro pacto. Ela tirava dele a comida que precisava para alimentar sua falta de prazer em viver. Ele por conseqüência arrancaria dela o que precisava para realizar suas insônias e transformar suas noites em pura arte. Seus corpos, por mais feminina que Érica fosse e mais masculino que Mateus fosse, eram parecidissimos. A forma de andar, a mania irregular de deixar os cabelos caírem sobre os olhos quase sempre mal abertos, o jeito com que entortavam o tronco caso vissem algo que os dessem vontade de sair correndo, tudo era presente nos dois ao mesmo tempo que se forçavam a viver dentro de suas diferenças. As mãos, imensas eram as diferenças entre as mãos dele, dela. Algo que costumavam esquecer de prestar atenção. Na rua, muitos olhavam enquanto os dois passavam. Eram de fato uma alegoria de tudo que faziam deles especiais um para o outro. Os cabelos, a maneira de andar, o certo ar de superioridade que se existia era porque realmente imaginavam estar em algum lugar onde todos aqueles que passavam em volta não poderiam estar, um lugar onde a pouca luz manteria o mais tolerante dos mortais fora de órbita. Mas, poucos entenderiam, Mateus e Érica preferiam manter tudo quieto, tudo preso na inconstante porém bem proporcionada masmorra em que viviam. O tempo seria o bom juiz, mas se fosse um ruim também não faria diferença.


Eles paravam diante um pequeno prédio de tijolos vermelhos, uma raridade naquele centro movimentado e cinza, pouco diferente deles mesmo. Mateus olhava bem dentro dos olhos de Érica e sorria calado. Ela beijava a ponta de seu nariz e o contornava com carinho, antes de entrar ela o chamava:


Matty...”

Sim?”

O céu...”

...Pode deixar.”


Sem se olharem por muito mais tempo, Mateus caminhava pra longe enquanto a porta de madeira pesada batia com violência depois de Érica ter entrado. Mateus se afastava como se afastavam os sons demais que lá fora se agitavam. Ela subia as escadas, agora sozinha o que significava mais do que estar sozinha fisicamente, denotava um momento de angústia que prolongado por todo o dia ressurgia ao topo de todo o desespero alguns minutos antes de se reverem, nos exatos minutos antes de ouvir o assobio que Mateus costumava realizar ao chegar para buscá-la. Isso aconteceria naquele dia, uma terça-feira qualquer alguns minutos passados das dezoito horas que era exatamente o momento certo antes de Érica perder o fio de qualquer coisa que a mantivesse presa a um cimento qualquer que seria a massa base para sua sanidade. Sanidade. Tinha essa palavrinha tatuada na nuca, lugar esse onde Mateus agraciava com algum beijo ou toque caso a irmã precisasse e geralmente aconteceria em algum momento da semana, do dia em que ficasse longe dele por mais tempo. O céu se arrendondava em chuva que traria trabalho.


Ele gostava bastante disso.



Os dois desciam a ruazinha que agora começava a ficar escura.


A mão dela que quase poderia ser confundida com uma pluma macia repousava sobre seu ombro direito. Era ali que ela ficava.





Capítulo I



Capítulo I – Ele, Ela





Mateus. Érica.



Enquanto lavava a louça Érica cantarolava a canção que se ouvia vindo da sala. Mateus gostava de deixar a televisão ligada em canal nenhum apenas conectada às inúmeras formas de vídeo game que ele possuía. Érica fumava, enquanto o café lentamente escorria do antigo funil que era o auxiliar na feitura do café que os pais de ambos costumavam preparar todas as manhãs. Antes disso, teria sido da avó materna que por alguma virada do destino, acabou caindo num navio vindo para os Estados Unidos em vez de permanecer na Europa divida da segunda guerra. Entre palavras cantadas e tragos em seu cigarro, Érica pensava no rosto frio de sua avó. Gostava de se imaginar no lugar dela, vivendo e experimentando um mundo que jamais experimentaria enquanto Mateus não sabia bem o que queria. Ou melhor, já não queria muito mais do que continuar vivendo exatamente do jeito que vivia que seria confuso se não fosse tão simples: ele e ela, vivendo em um apartamento antigo, trabalhando apenas para pagar as contas e vivendo por viver. Mateus e Érica queriam viver por viver, viver sem muito o que viver.


Alguém passou por aqui ontem a noite, sis?”


Não, não porque?”


O silêncio de Mateus era compreensível. Nada havia para dizer caso soubesse logo tão prontamente que ninguém poderia fisicamente ter mexido em qualquer coisa que fosse dele. O café estava claro, pronto. Ela o chamava, quase quieta e por alguma obra da proximidade que ambos tinham, ele já sabia disso antes de ser chamado propriamente dito, porque enquanto ela abria a boca para pronunciar seu nome sua presença já era tangível e efetiva dentro da minúscula cozinha que fazia parte do ninho espetacular que os dois habitavam.


Enquanto Érica dançava de um lado para o outro, cigarro no canto da boca, pratos e talheres em mãos, Mateus a contornava como quem contorna um sonho, na ponta dos pés. Agarrava o leite na geladeira, posicionava a manteiga e o queijo no centro da pequena mesa no canto, se preparava para dividir tudo com ela. O sol despontava lá fora e o relógio tic tóqueava preso a parede. Com alguns movimentos e poucas palavras os dois se sentavam, jornal no colo dele, livro grosso sobre a mesa ao lado dela. Tinham uma verdadeira lista de pactos que viviam para que pudessem viver um para o outro. Quando se esbarrassem, precisavam parar tudo e notar de fato a presença do outro. “Nos esbarramos porque nossos corpos gritam por contato”, era o que Érica dissera outrora. Quando tocava alguma música que ambos gostavam imensamente, era necessário que se levantassem e começassem a dançar, de preferência juntos, mas agora não importava. Era de manhã cedo e eles se deleitavam na simples sensação de poderem estar ali. O sal, o açúcar, o céu. Todos que realmente faziam parte de suas vidas estavam presentes, seria um dia bom.