terça-feira, 9 de junho de 2009

Capítulo XII – Anúncio, Queda



Ela gostava de gastar com bobagens, seria esse o principio: bobagens. Uma correntinha qualquer com algum penduricalho qualquer que algum dia servira de significativo presente de alguém para ela, mas que agora já não lhe servia nem de bagagem de memória. Tinha muitas dessas pequenas amostras de afetos diversos, todos dispensáveis por tanto tempo, tantos que pareciam ser apenas o que foram: o início de uma vida plena de sensações que nunca ousou viver.


Sentada de frente para a janela de moldura trabalhada, cores desbotadas e de uma cortina tão fina que chegava a ser uma piada pensar que aquilo esconderia qualquer coisa, Érica prestava atenção apenas à atenção que consagrava à lenta queda do sol por detrás dos antigos prédios daquela região quase folclórica, as cores enfim se fundiam numa, da maneira que gostava de ver, dão valor excessivo ao colorido – ela pensava – quando o desafio maior é descobrir a intensa beleza no humor monocromático. Como gostava dessa palavra. Monocromático. Repetia delicadamente e deixava o som rolar entre seus lábios de gosto intenso.

Teodoro se mexia na cama, percebia Érica brincando com a corrente em volta do seu pescoço e com o olhar voltado para o tempo lá fora. Pensava que deveria fazer o máximo para não fazer muito barulho, esses momentos eram mais do que mágica, eram de fato o encontro daquilo que seria o nosso âmago, o nosso verdadeiro estado de ser com a dolorosa verdade que nada mais era do que o Fim. O fim que respira e murmura palavras em nossos ouvidos durante toda a nossa vida e em troca nos pede apenas uma coisa: nosso eterno medo. Érica enfrentava ali o Fim que não pedia licença para tomar aquilo que era intrinsecamente seu, Teodoro observava salientando em sua cabeça apenas do fato do Fim ser a eterna beleza do que se vive, agora e agora e agora.


O momento era engolido, sim, claro. Mas não digerido e por isso seu gosto permanecia como algo eterno – o grande paradoxo do Fim! - sendo remoído ferozmente pelas bocas que daquele Fim se asseguravam.


Gosta do que vê?”


Érica sorria sem tirar os olhos do que se passava lá fora.


Gosto-muito.”


Engraçado...”


Do que ri?”


Acabou de dizer 'gosto muito' como se parecesse ser apenas uma palavra.”


Érica gostava da pertinente observação daquele que a observava de longe e com tal certeza de si que sua presença brilhava pelas paredes daquele quarto que por pouco não eram uma extensão daquela mesma cor que resplandecia lá fora.


Gostaria de jantar comigo? Em algum lugar que nunca tenha ido?”


Claro.”


O convite era enfim bem empregado já que desde o dia anterior quando os dois se enfiaram naquele quarto, não haviam levado comida alguma para dentro, sinal de que tudo o que parecia irregular e novo era também real.


Érica passava as pontas dos dedos sempre prontos envolta dos olhos que por alguma razão pareciam inchados, o Fim ao certo sabia exatamente como encher de lágrimas olhos virgens.


***


Teodoro segurava as pontas do fino tecido que em forma de laço dava ao desenho da silhueta de Érica um ar todo feminino por estar bem acima da sua cintura. Sem perceber qualquer coisa, Érica apenas observava as pessoas comendo e conversando calmamente no pátio daquele restaurante que seria ainda mais perfeito se tocasse música ao vivo. Gostava das coisas feitas ao dente.


Se tentar se mexer eu desarrumo todo o seu vestido.”


Com esse alerta Érica respirou fundo e se imobilizou enquanto propositalmente Teodoro inclinava seu tronco e levava seus lábios contra a nuca daquela mulher que nunca havia sido beijada daquela maneira antes, o sorriso quase infantil de Érica entregava seu segredo: nunca havia sido amada como uma mulher deseja ser – e isso não pode ser mal interpretado, por isso vou esmiuçar bem o que acabei de redigir.


A mulher, em seu conteúdo mutável, em seu sentido desfrutável sempre arde por aquilo que é algo além e esse além vai sempre estar logo ali, logo adiante, logo ao alcance dela – o problema maior é reconhecer o que se está diante de si quando nem o si está certo de que existe da forma que existe, sim é tudo bem confuso. Érica nunca havia sido amada dessa forma, da forma que faz com que toda mulher olhe ali, adiante e por alguma brincadeira ardilosa do destino ela havia encontrado onde menos esperava – numa rua movimentada em horário nada nobre quando todos estão a ver as horas passar – aquele que a faria querer ver além, aquele que despertaria sua benevolente vontade de ser... mulher.


Até então, Érica era alguém que muito se parecia com um ser a procura de uma forma, talvez algum tom de luminosidade que desesperadamente procurava uma brecha para iluminar qualquer vão escuro que fosse e, talvez Teodoro acabaria por ser essa tal fenda – Érica se agarrava a sua descrença afinal nunca tinha vivido aquilo que vivia e talvez por ler muito, pressentia ser aquela personagem ambígua que mora entre o sentir e o ressentir, sem saber bem se havia um meio termo para isso.


Teodoro dava as instruções para o garçom, falava em sua língua nativa dentro de sua terra nativa e com gentes de descendência parecida com a sua, Érica sentia algum tipo de dor por não se sentir nativa de lugar algum, próxima de gente alguma. Ele continuava a explicar de que maneira, de que peso e que medida se eram feitas as vivências em determinadas áreas do globo, porque as pessoas se perdiam e porque eram delas o por do sol final - “pena que não notam a tempo” - enquanto a comida vinha, enquanto a bebida os enfraquecia, enquanto as garfadas e os desejos eram consumidos Teodoro denunciava a vida como ela é grossa, moída da forma que Érica jamais havia ouvido – e ela concordava de prontidão com muito do que ouvia mas negava com a mesma paixão aquilo que não engolia, que não se encaixava em suas mãos sempre prontas. Respondia a altura mas só que não com palavras e sim com a entrega de um olhar tão confiado – porque acreditava nele – que o momento dispensava palavras. Aliás, que momento que precisa engolir palavras como se o ato de reverenciar imprudências fosse o único que restasse a qualquer ser da classe humana e não, Érica parecia não concordar com formulas concebidas de inúmeros séculos de depravação humana, nem mesmo com a idéia de que existir faria parte de qualquer coisa maior, maior do que a vida por si só – Érica sempre viu ela mesma e todos aqueles que andam por aí e que falam línguas como fantasmas da arrogância, cheios de uma estupidez adorada e regojizada como única forma de se conviver num mundo que de fato não é de ninguém. Teodoro parecia que sentia tudo isso transpirando e sendo misturado com o ar envolta de Érica, percebia sua intensidade e sua profundidade como ninguém jamais poderia por em palavras e dentro de seus ouvidos depositava todo um jorro de nítidas impressões que serviriam de ferramenta dilatadora ao peito profundo de Érica, coisa que poderia resultar em um penoso fim a qualquer coisa que começava já com ares de perfeição razoável (dentro de parâmetros daqueles que não vivem sob parâmetro nenhum).


Érica tomava algum ar logo depois da refeição que parecia a mante-la aquecida mesmo com o vento frio que começava a soprar na sacada do restaurante. O cigarro era consumido apressadamente como se dele dependesse a sua vida.


Teodoro caminhava lentamente na direção de Érica que ao sentir a presença do mais novo amigo escalava a algum local mentalmente onde pudesse respirar. A presença, sentia em suas mãos, é demais para ser assimilada tão rapidamente. A presença deve ser degustada como se fazem os amantes do bom vinho, da boa comida, da vida refletida, e ela sabia bem disso mesmo que silenciosamente.


Ao sentir que ela ali, quieta observava as ondas de um mar pouco compreensivo indo e vindo, Teodoro lançou seguramente sua mão direita sobre seu ombro esquerdo que friamente permaneceu imóvel.


Teodoro não entendeu prontamente.


Não sei como te dizer o que sinto.”


As palavras atiradas contra o vento úmido que consumia tudo o que estava envolta não fazia a compreensão das palavras jogo fácil, Teodoro mantinha um certo pudor em querer entender de qualquer maneira o que Érica estaria dizendo de qualquer maneira.


Não sei como... explicar que não quero, e é isso que quero dizer, que não quero alguém que divida qualquer coisa comigo. Não agora.”


Teodoro realmente não conseguia ver além daquilo que ali se apresentava como uma verdadeira revolta inflamada contra o mundo e em sua compreensão quase infalível demais respeitara todas e quaisquer palavras que Érica largava contra a corrente.


Ele que, de uma forma fria e crua se mostrou inteiro o homem que era a Érica, também demonstrara santidade intacta ao partir, colocando o chapéu de volta sem uma única palavra que contestasse aquilo que Érica pedira.


Ela preferia não olhar para trás enquanto Teodoro pagava a conta e partia calmamente com algum rumo certo – ou pelo menos era o que gostava de demonstrar.



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