sexta-feira, 24 de abril de 2009

Capítulo VII


Capitulo VII- Dois, Outros



Mateus e Érica passariam aquela noite quietos, um olhando para o outro entrelaçados diante da TV não porque a mesma estivesse ligada, mas porque por alguma razão menor o sofá era o melhor canto de toda a casa. Enquanto o sono de fato não vinha ele sussurraria pela enésima vez a mesma história de como João e Maria tomariam o mundo se não fosse pelo mundo em si. Suas histórias a enchiam de qualquer segurança estranha que mantinha tudo centrado, tudo preso a algum fio imaginário que fazia parte desse vácuo que os dois chamavam de vínculo. O tempo la fora continuava a correr como um constante choro, uma lástima vivida apenas por privilegiados que sem muita graça partiriam do princípio básico de que uma casa é uma extensão do ser, estar dentro é o mesmo que travar um ato de proximidade com aquilo que é inconstantemente mais do que se poderia ser fora – e eles sabiam disso, de uma forma de outra consciente ou inconscientemente.


Mateus a deixava quieitinha onde adormeceu e a passos de quem toma mais cuidado do que deve, se guiou até o quarto onde seus instrumentos e computador estariam todos coligados a espera do toque único, responsável e inteiro dele, que sabia bem como se deixar ser usado por todos aqueles instrumentos revelados a ele de tal forma que nem mesmo estar nu representaria estar mais íntimo de si mesmo do que aqueles instrumentos estariam dele. Tudo era um grande mistério até aquela porta se fechar e os dedos longos com um formato todo peculiar de quem é mais um filósofo em repouso do que um trabalhador ávido tocarem os lugares certos, naquela hora que era de fato a certa. Mateus se dissipava em um tom todo dele que sem meias palavras rejeitava qualquer vontade alheia. Num quarto fechado onde até a janela parece ser parede espessa e sombria, o mundo não importava para ele como todo bom clichê que vivia e respirava naquela cidade cinzenta e dolorida como outras em todo o planeta. Ele não pensava. Não precisaria disso agora nem mesmo até a manhã banhar aquele canto da terra com algum sopro de qualquer coisa que pareceria a olhos ignóbeis algo como esperança. Ele já havia perdido essa coisa distante que chamava de fé e em nome do bom gosto que o servia de guia, recusava qualquer vontade maior do que aquela mesma que ali vivia: estar a sós com a música que dia após dia mais fazia parte de suas veias e ventrículos, deixando o corpo todo um ato de amor com aquilo que faria alguém sentir... o que? Qualquer coisa.


Enquanto tocava botões, cordas e pedais os fones de ouvido o mantinham ainda mais como um recluso amarrado a si mesmo. Os nós que atava eram degraus, os olhares que deixava de consumir eram alimento não presente, objetivo. O quarto rodava em si como o som que atiçava cada célula de seu corpo que desesperadamente procuram por algum lugar para se esconderem, nada era páreo para o que estava prestes a sentir e ele sabia disso. Sabia tão conscientemente que seria impossível explicar em palavras, era muito maior o conceito de si dentro do que estava para viver do que qualquer explicação. Ele também sabia disso. A manhã começava a despontar lá fora e inexplicavelmente o tempo não fazia sentido mais.



*/*


Ainda com os olhos fechados, Érica percebia a luz quente e alaranjada tomando suas pálpebras. Um sorriso tonto parecia tomar seus lábios, sentia algum prazer afinal com aquele espetáculo singular que era a manhã. Devagar seu corpo se espreguiçava como uma estrela a pedir por espaço, os olhos começavam a se abrir. A espessa camada do tecido que cobria o sofá parecia logo a incomodar e prontamente seu corpo inteiro urgia de necessidade de sair dali.


Ela se levantava como quem não tem a mínima vontade de esperar pelas coisas acontecerem, coisa que não condizia com a lente que realmente usava para ver o mundo. Caminhava decidia até a grande porta de correr de vidro da sala, a tal janela que não parecia ser mais do que apenas uma janela e no segundo que colocou algum esforço para fazer correr o único obstáculo que a mantinha distante do mundo alaranjado que alargara sua visão, uma leve brisa repercutia entre os quatro cantos da sala, procurando qualquer coisa que fosse para que o silêncio fosse tomado de ar, oxigênio para que os pensamentos feitos de nada fossem agora cheios de tudo. No corredor um Mateus sedento caminhava vestindo apenas calças e com os pés desprovidos de qualquer proteção. Sua visita até a cozinha foi curta, percebera Érica lá fora observando tudo do pequeno terraço e logo partiu ao seu encontro. Ela ali estava quieta, serena como a manhã e logo ali, nas ruas que mais pareciam labirintos repletos de uma intensidade que não era deles e não os pertencia, a vida brotava estéril – tudo o que eles não queriam ter de presenciar e que faziam de tudo para negar.


Mateus sorriu para a irmã que sorriu de volta como quem quer chorar de felicidade.


O céu, Matty...”


Eu sei...”






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