sexta-feira, 24 de abril de 2009

Capítulo VI

Capitulo VI- Celebrar, Celebrar


Se fazia claro o tempo úmido que lá fora se aprontava para despontar. As largas gotas já se lançavam contra os vidros grossos da janela que dava à sala alguma intimidade com o mundo de fora, os sons eram os mesmos de sempre: alguma música ao fundo no quarto enquanto o café era preparado na cozinha, a cozinha aquela que naquele instante parecia infinitamente distante, como se para se chegar lá seria necessário um verdadeiro esforço super humano. Érica de fato precisava de algum esforço sobrehumano para sair do estado que contemplava: o ser. Gostava de ser, tinha um verdadeiro prazer nisso. Observava contente os primeiros sinais de chuva e enquanto resguardava para si o sabor de cereja que aquele prazer fazia transbordar dentro de sua boca ávida por um tudo incapaz de ser suficiente para ela, percebia a si mesmo como poucas pessoas jamais perceberiam a si próprias. Por manter-se quieta e por se observar com tanta compreensão percebia mais do que o perceber conteria. Em seus olhos moravam um mundo de cores caóticas mas juntas criavam Érica. Ela era esse conjunto intrigante de abalos sísmicos, ela era – pelo menos agora – um ato de amor.


O bule no fogo apitava, era sinal que alguém precisava se locomover até o fim do mundo.


A passos de quem ainda aprende a andar, Érica se prendeu a necessidade de ir até a cozinha. Era daquele tempo que gostava, friozinho leve, uma chuva presa na garganta do céu e o café a ferver o olhar. Ela esperava calmamente o líquido escuro e fresco respingar do coador que quase cansado continuava a trabalhar. Seus olhos registravam cada nuance daquela escura massa que ficava dentro do filtro, o contraste do negrume antigo dentro do claro branco novo fazia Érica sorrir. O vapor que rondava o café era de se hipnotizar até Mateus que encostado ao batente da porta observava Érica em seu ato de comer com os olhos aquele fluido. Érica não o percebia, era. Érica é. Enquanto Mateus entende. Seus olhos procuravam os dela que desde aquela última noite de algo que parecia ter sido um desencontro, já não queriam trocar olhares com os dele. Era tarde para ela, mas ainda cedo dentro do dia que acabara de despontar triste. Mateus não pensava em estragar qualquer momento que ela estivesse vivendo ali diante da sua presença incalculada, e muito menos desejava que qualquer coisa que havia sido quebrada na outra noite voltasse a vida em cacos recolados e tortos como um quebra-cabeça de mau gosto. Precisava que isso que morria fosse posto de lado finalmente por ambos pois era aquilo que o mantinha com o olhar cinza, mesmo sabendo que seus olhos castanhos cheios de alguma vida que ainda não conhecia moravam em algum lugar daquele semblante ainda penoso.


Érica também o permitia ser e como uma sábia anciã repetia para si mesma o pensamento máximo que alcançara até então: morrer para viver. Morrer para viver.


De repente a chuva lá fora começava a atingir com violência as janelas frágeis da cozinha. Antes de se desesperar, Mateus caminhou até as mesmas para cerrá-las esbarrando de leve o cotovelo contra as costas cálidas de Érica que desnorteada, ficava a esperar pelo movimento se tornar no que eles tinham combinado há tanto tempo atrás, sem muito ligar para o caos externo. Mateus não se lembrou do combinado prontamente e Érica antes mesmo de Mateus ter tempo de se virar completamente de frente para ela, tinha os olhos cheios de lágrimas deixando tudo turvo, inclusive o que não queria ver. O café estava pronto como ele agora estaria para a ter de volta em seus braços. Ele a segurou firmemente de uma maneira que fazia tempo que não segurava e pedia perdão baixinho por não ter cumprido a promessa. O soluço que junto das lágrimas mantinham o seu peito quente começavam a desesperar os dois que sem mais tempo para alcançarem alguma forma de acento, se ajoelharam ali mesmo diante da dor crescente que os tomava. Um nos braços do outro, retumbantes e eternamente presos a uma dor revoltosa que não os largaria assim tão facilmente... Alguém havia colado as peças de volta, precipitadamente.




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