sexta-feira, 24 de abril de 2009

Capitulo IV

Capitulo IV - Desvendar,Redobrar




O que seria importante para Mateus na sua vida? Perguntava-se constantemente como se disso dependesse sua familiaridade consigo mesmo. Respondia sempre afobado e abafado como que com medo da resposta ser mais alta do que a sua vontade de não saber. Érica observava de longe, olhos firmados numa eternidade que sabia bem Mateus não poderia ser infinita. Resta-nos uma saída, era o que repetia em voz alta. Uma saída que é aquela que temia mais entre todas: amar.


Érica se preparava para pegar mais uma bebida no balcão do bar com Rosa, bartender “senior” dentro daquele clube. Mateus a repercutir de longe, olhos inconstantes que dançavam entre pickup, irmã e corpos em movimentos quase intensos demais para serem realizáveis. Horas corriam como se correm desesperados participantes de maratonas que Érica nunca compreendia e um ritmo irregular como irregular eram os desejos daquele que ela chamava de amor sem saber muito bem o que aquilo poderia vir a querer dizer.


Como explicar para ela? Era a dúvida que então trazia consigo naquela noite. Como explorar o amor que não seja o nosso e respingar sobre suas mãos e ombros a certeza de que isso não significaria nos separarmos por nada? Ela aparecia, copo na mão, sorriso torto, dentes quase a mostra.


Aqui, Matty.”


Obrigado, Sis...”


Érica mantinha uma aura de quem está perdida em algum vão, mas Mateus sabia que não era bem assim, enquanto aquela que tinha os mesmos olhos, os mesmos fios grossos e pretos presos ao seu couro cabeludo patinava, ele a mantinha sob seu olhar quase paterno a espiar, espiando espiando atentamente... Ele a conhecia como conhecia seus pudores e desejos, como conhecia seus lugares mais escuros, seus pedidos mais desumanos enquanto Érica pairava santa, resguardada. Ela no fundo queria tê-lo não como aquele que dividiria sua vida desde o momento único que foram concebidos até o fim, mas sim como alguém que se é encontrado na rua, no cinema, no palco de um teatro abandonado no centro da cidade... Ela queria encontra-lo e assim te-lo, mas a sorte escreve histórias incabíveis. Os dois nasceram para serem unidos, sim, mas não como queriam.


Sis...”


Sim, Mat?”

Alcance aquele megafone para mim por favor...”


Em pouco menos de dois segundos o instrumento estava em suas mãos.


Em alguns minutos a noite acabaria pra quem dançava e começaria de fato para Mateus e Érica.





Capitulo III



Capitulo III- Pingado,Em



O caminho para o local favorito dos dois era longo. Entre poças e bolhas, buracos e cães perdidos ainda haviam outros mundos que sobreviviam ao sub-mundo em que habitavam. Ela e ele eram outro desses sub-mundos sempre forçados a cair na mesma música. A música. Se tocassem qualquer coisa que Mateus não gostasse era hora de pedir ajuda ao dono da casa, aquele que em seu minúsculo cubículo respirava o ar pesado da própria fumaça. Entre algumas pessoas que se seguravam contra outras tão perdidas quanto as primeiras, Mateus e Érica triunfantemente mas não por isso com certa dificuldade atravessavam toda a extensão escorregadia da pista que com o suor reunido das últimas horas parecia viver e respirar por si só, era um verdadeiro espetáculo que provava sem nenhum teor científico – Mateus teria odiado ouvir isso – que um grande grupo de humanos é de fato um grande bicho que respira.

Dentro do pequeno cubículo, Érica é deixada na porta e Mateus entra com uma autoridade ferina.


Lancaster! Onde anda seu bom senso, meu senhor?”


Ah Matty, vem aqui pegar no meu bom senso...”


Posso entrar?”


Achei que vocês não chegariam nunca...”


Trânsito!”


Claro, claro, conheço a cara do teu trânsito...”


Posso então?”


Entra. E fala praquele mané na estação que eu cansei dele nessa cidade... Ele não é mais bem vindo.”


Mateus diz que sim com a cabeça, Érica o observa. Lancaster chama o seu nome antes da porta ser fechada.


Matty!”


...Fala.”


Diga pra bela ao teu lado que eu ainda a amo...”


Pois que continue assim: platônico, bonitão!”


Enquanto rolavam por outros ainda no mesmo transe que estavam quando ali chegaram, Mateus se despede de Érica que fica pelo bar e responde suas próprias perguntas. Ali ela poderia logo deixar de ser ele e ela e logo seria ela, claro, ao som dele.


Mateus se preparava. Tirava os discos do seu gabinete pessoal, onde ficara durante horas alguns dias de sua vida simplesmente enchendo de tudo que poderia fazer alguma noite dessas uma faísca causar algum incêndio. A noite não seria um clichê como era pra todos os demais ali presentes. A noite seria uma senhora daquelas que observam e não sabem bem a hora certa de se retirar...




Capítulo II


Capítulo II – Passos,Dados




Os passos apressados enchiam os as paredes altas e antigas daquele prédio. Pés que, quase juntos desciam a escada, sempre juntos estariam – outro pacto. Ela tirava dele a comida que precisava para alimentar sua falta de prazer em viver. Ele por conseqüência arrancaria dela o que precisava para realizar suas insônias e transformar suas noites em pura arte. Seus corpos, por mais feminina que Érica fosse e mais masculino que Mateus fosse, eram parecidissimos. A forma de andar, a mania irregular de deixar os cabelos caírem sobre os olhos quase sempre mal abertos, o jeito com que entortavam o tronco caso vissem algo que os dessem vontade de sair correndo, tudo era presente nos dois ao mesmo tempo que se forçavam a viver dentro de suas diferenças. As mãos, imensas eram as diferenças entre as mãos dele, dela. Algo que costumavam esquecer de prestar atenção. Na rua, muitos olhavam enquanto os dois passavam. Eram de fato uma alegoria de tudo que faziam deles especiais um para o outro. Os cabelos, a maneira de andar, o certo ar de superioridade que se existia era porque realmente imaginavam estar em algum lugar onde todos aqueles que passavam em volta não poderiam estar, um lugar onde a pouca luz manteria o mais tolerante dos mortais fora de órbita. Mas, poucos entenderiam, Mateus e Érica preferiam manter tudo quieto, tudo preso na inconstante porém bem proporcionada masmorra em que viviam. O tempo seria o bom juiz, mas se fosse um ruim também não faria diferença.


Eles paravam diante um pequeno prédio de tijolos vermelhos, uma raridade naquele centro movimentado e cinza, pouco diferente deles mesmo. Mateus olhava bem dentro dos olhos de Érica e sorria calado. Ela beijava a ponta de seu nariz e o contornava com carinho, antes de entrar ela o chamava:


Matty...”

Sim?”

O céu...”

...Pode deixar.”


Sem se olharem por muito mais tempo, Mateus caminhava pra longe enquanto a porta de madeira pesada batia com violência depois de Érica ter entrado. Mateus se afastava como se afastavam os sons demais que lá fora se agitavam. Ela subia as escadas, agora sozinha o que significava mais do que estar sozinha fisicamente, denotava um momento de angústia que prolongado por todo o dia ressurgia ao topo de todo o desespero alguns minutos antes de se reverem, nos exatos minutos antes de ouvir o assobio que Mateus costumava realizar ao chegar para buscá-la. Isso aconteceria naquele dia, uma terça-feira qualquer alguns minutos passados das dezoito horas que era exatamente o momento certo antes de Érica perder o fio de qualquer coisa que a mantivesse presa a um cimento qualquer que seria a massa base para sua sanidade. Sanidade. Tinha essa palavrinha tatuada na nuca, lugar esse onde Mateus agraciava com algum beijo ou toque caso a irmã precisasse e geralmente aconteceria em algum momento da semana, do dia em que ficasse longe dele por mais tempo. O céu se arrendondava em chuva que traria trabalho.


Ele gostava bastante disso.



Os dois desciam a ruazinha que agora começava a ficar escura.


A mão dela que quase poderia ser confundida com uma pluma macia repousava sobre seu ombro direito. Era ali que ela ficava.





Capítulo I



Capítulo I – Ele, Ela





Mateus. Érica.



Enquanto lavava a louça Érica cantarolava a canção que se ouvia vindo da sala. Mateus gostava de deixar a televisão ligada em canal nenhum apenas conectada às inúmeras formas de vídeo game que ele possuía. Érica fumava, enquanto o café lentamente escorria do antigo funil que era o auxiliar na feitura do café que os pais de ambos costumavam preparar todas as manhãs. Antes disso, teria sido da avó materna que por alguma virada do destino, acabou caindo num navio vindo para os Estados Unidos em vez de permanecer na Europa divida da segunda guerra. Entre palavras cantadas e tragos em seu cigarro, Érica pensava no rosto frio de sua avó. Gostava de se imaginar no lugar dela, vivendo e experimentando um mundo que jamais experimentaria enquanto Mateus não sabia bem o que queria. Ou melhor, já não queria muito mais do que continuar vivendo exatamente do jeito que vivia que seria confuso se não fosse tão simples: ele e ela, vivendo em um apartamento antigo, trabalhando apenas para pagar as contas e vivendo por viver. Mateus e Érica queriam viver por viver, viver sem muito o que viver.


Alguém passou por aqui ontem a noite, sis?”


Não, não porque?”


O silêncio de Mateus era compreensível. Nada havia para dizer caso soubesse logo tão prontamente que ninguém poderia fisicamente ter mexido em qualquer coisa que fosse dele. O café estava claro, pronto. Ela o chamava, quase quieta e por alguma obra da proximidade que ambos tinham, ele já sabia disso antes de ser chamado propriamente dito, porque enquanto ela abria a boca para pronunciar seu nome sua presença já era tangível e efetiva dentro da minúscula cozinha que fazia parte do ninho espetacular que os dois habitavam.


Enquanto Érica dançava de um lado para o outro, cigarro no canto da boca, pratos e talheres em mãos, Mateus a contornava como quem contorna um sonho, na ponta dos pés. Agarrava o leite na geladeira, posicionava a manteiga e o queijo no centro da pequena mesa no canto, se preparava para dividir tudo com ela. O sol despontava lá fora e o relógio tic tóqueava preso a parede. Com alguns movimentos e poucas palavras os dois se sentavam, jornal no colo dele, livro grosso sobre a mesa ao lado dela. Tinham uma verdadeira lista de pactos que viviam para que pudessem viver um para o outro. Quando se esbarrassem, precisavam parar tudo e notar de fato a presença do outro. “Nos esbarramos porque nossos corpos gritam por contato”, era o que Érica dissera outrora. Quando tocava alguma música que ambos gostavam imensamente, era necessário que se levantassem e começassem a dançar, de preferência juntos, mas agora não importava. Era de manhã cedo e eles se deleitavam na simples sensação de poderem estar ali. O sal, o açúcar, o céu. Todos que realmente faziam parte de suas vidas estavam presentes, seria um dia bom.